sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Sociologia e Direito

I - Sociologia e Direito









1.1 – Introdução







Investigar o conjunto de expectativas que possui a sociedade brasileira diante do desempenho dos profissionais jurídicos é tarefa necessária a qualquer desses profissionais, posto que são remunerados pelo corpo social para defender seus mais elevados interesses em juízo.





Não se trata de tolher a liberdade de exercício profissional, direito humano e fundamental, mas sim de examinar, cientificamente, as causas que têm levado a população a descrer no sistema jurídico, a partir da conduta de seus profissionais, bem como apontar fundamentos teóricos que devem ser levados em conta por todos aqueles que labutam no foro, cotidianamente.







1.2 – Do Direito enquanto subsistema social







Em primeiro lugar, é preciso perceber as insuficiências do Direito no tocante à condução do povo brasileiro à fruição dos direitos previstos na legislação. É imperioso não esperar do sistema jurídico, enquanto controle social formal, mais do que aquilo que representa, diante de uma realidade social mais ampla.





Um tecnicismo supervalorizado pelos cursos jurídicos, em direção à realização financeira dos postulantes a cargos bem remunerados, em cotejo com a condição social da imensa maioria, tem provocado uma desvalorização do real conhecimento jurídico, em suas relações com os demais sistemas sociais, de acordo com a visão interdisciplinar exigida pelo atual estágio da ciência.





Não se pode realmente conhecer qualquer instituto jurídico senão a partir de sua origem e evolução histórica. Qual outra razão explica que a legislação civil pátria seja fortemente influenciada pela codificação romana? “O mundo jurídico não pode, então, ser verdadeiramente conhecido, isto é, compreendido, senão em relação a tudo o que permitiu a sua existência e no seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do direito de seu isolamento, projecta-o no mundo real onde ele encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social”[1].





A população brasileira, fruto de grupos étnicos historicamente compelidos a viver sob o padrão europeu de existência, em sua generalidade órfã de uma educação de qualidade, aviltantemente remunerada, responsabiliza o jurídico pela ineficácia de normas constitucionais como a que abaixo se segue:





“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:





IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;[2]



Ocorre que é na Constituição que os sistemas jurídico e político se acoplam. Em conseqüência disso, de nada adianta um direito constitucional encontrar-se previsto, destinado à cidadania, se não houver vontade política capaz de torná-lo eficaz. “Nas contínuas discussões sobre a necessidade e a porcentagem de um possível aumento, os políticos e a mídia discutem sobre a viabilidade econômica de uma tal medida. Geralmente, recusa-se um aumento drástico com o argumento de que isto levaria ao endividamento do Estado, à recessão econômica, à inflação etc. Nessas discussões todos parecem ter esquecido a prescrição que a Constituição de 1988 impõe ao legislador: a obrigação jurídica de instituir um salário mínimo capaz de atender as necessidades de moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (art. 7.º, inciso IV). Tal obrigação não está sujeita a considerações de possibilidade econômica ou política[3].





1.3 - Da justiça social enquanto paradigma de conduta





Urge diagnosticar a realidade jurídica integrante de uma realidade social bem mais ampla. Portanto, é necessário superar o mito da neutralidade científica, cânone do positivismo. Como é possível ao cientista social, ao profissional jurídico, que receberam os primeiros valores morais em família, educaram-se de acordo com a opção pedagógica da escola que freqüentaram, viveram e convivem em sociedade, que sejam neutros?



Do advogado se espera que defenda os interesses de seus constituintes, é parcial por natureza; do promotor de justiça, fiscal da lei e do interesse público, a opção pelo social é patente; e não há como negar, o juiz deve ser imparcial, todavia, não consegue completamente, posto que é humano, sujeito à influência do mundo que o cerca.



Desde meados do século passado, a dimensão valorativa tem ganho força progressiva no mundo jurídico, a partir da adoção universal da Teoria da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale. De fato: todo acontecimento que gera efeito jurídico (fato jurídico), é regulado por regra de conduta coercível (norma jurídica), fundamentada em princípio aceito por uma dada sociedade, num determinado momento histórico (valor).



Pode-se perceber ainda que a dimensão axiológica é a que vai fundamentar a norma jurídica a ser editada, para regular a conduta humana em sociedade. Ou seja, não há preceito jurídico que não esteja apoiado em princípio (valor) aceito por uma determinada sociedade, que almeja realizá-lo por intermédio do sistema normativo.



É simples compreender quando se analisa uma norma jurídica em sua particularidade. Assim, quando o artigo 121 do Código Penal brasileiro prescreve a sanção privativa de liberdade para a conduta de “matar alguém”, é porque o Direito, ciência deôntica, que estuda como deve ser a conduta do homem em sociedade, pretende concretizar o princípio, valor do respeito a vida, enquanto bem jurídico mais caro à coletividade. Aliás, não é outro o motivo pelo qual há sanções gradativamente previstas no ordenamento, a depender dos bens jurídicos, princípios, valores que a sociedade quer ver concretizados para tornar possível a convivência social.



O hodierno estágio da ciência do Direito não mais se compraz com reducionismos, necessita de uma visão interdisciplinar, fulcrada em princípios que a fundamentem. Tal a importância da dimensão axiológica que o jusfilósofo italiano Giorgio Del Vecchio, conceitua Direito como sendo “a coordenação objectiva das acções possíveis entre vários sujeitos, segundo um princípio ético que as determina, excluindo qualquer impedimento[4].



Mas a opaca contraposição positivista de que o Direito é ciência, e, enquanto tal, não se influencia por valores subjetivos seria acertada se os valores que fundamentam o sistema jurídico fossem dotados dessa alegada subjetividade. Mas não, não são os valores de cada um, em sua singularidade, que servem de fundamento ao Direito, todavia, os valores compartilhados por todo um corpo social, num determinado momento histórico. É por essa razão que cada sociedade possui sua cultura, seus valores, e, em conseqüência, seu correspondente ordenamento jurídico.



Em contraposição, há valores aceitos numa dimensão supranacional, e, hoje, após a consolidação da Organização das Nações Unidas como instituição destinada à proteção da paz universal, global, que fundamentam os direitos humanos historicamente construídos de liberdade, igualdade, fraternidade e democracia. E o pensamento genial do sergipano Tobias Barreto já sabia disso, quando por expressão lapidar proferida no final do século XIX precisou o objeto da ciência jurídica enquanto histórico-cultural: “O Direito não é filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, produto cultural da humanidade”[5].



É que Direito, ciência deôntica, investiga os fenômenos sob a categoria de pensamento do dever-ser. O fenômeno jurídico já nasce valorado, portanto, pretende realizar por meio do ordenamento, os princípios aceitos por uma determinada sociedade. “A Filosofia sistematiza conceitos em nível de abstração, enquanto a ciência é positiva, isto é, junge-se ao experimental – observável, empírico -, relegando a valoração a priori, aceitando o axiológico apenas como expressão fenomênica configurada”[6].



A desvalorização da dimensão axiológica do sistema jurídico não conduz, apesar do propalado pelo positivismo, à neutralidade científica, mas sim à omissão diante das influências danosas advindas da classe dominante política e economicamente, capazes de tornar o sistema jurídico como um todo ineficaz.



Sob o mito da neutralidade científica o direito alemão já foi nazista. E é precisamente essa falsa neutralidade a principal responsável pelo descrédito da população brasileira em seus profissionais jurídicos.



Não há como o sistema jurídico desprezar os valores aceitos pela sociedade. Aliás, não há um só pensamento que não seja produzido de acordo com a ideologia do sujeito pensante. Logo, urge perceber fundamentos lógicos e axiológicos do sistema jurídico. Necessário é diagnosticar que Direito é fato, valor e norma. Todavia, devido o fato de ser ciência deôntica, o Direito deve ser justo e legítimo. “O ponto de partida há de ser sempre a afirmação, de cunho universal, de que o Direito é fato, valor e norma. Não existe senão com essas três dimensões. Contudo, o enunciado da teoria é meramente descritivo, situando-se na ordem sociológica da pura constatação. Direito não deve ser fato, valor e norma; é, e não pode deixar de ser. Na margem oposta, a nova teoria afirma que, além da primeira qualificação da juridicidade, o Direito deve ser justo e legítimo. Pode não ser, sem deixar de ser Direito. Precisamente nessa diferença, matriz de férteis resultados no domínio da produção filosófica e científica, parece residir a superioridade do tridimensionalismo axiológico, aqui proposto em suas linhas gerais”[7].



Mas não se diga com o positivismo que “o que é justo para alguém, pode não ser justo para outrem”. A justiça, enquanto valor que fundamenta o Direito não é a justiça em sua dimensão individual, conforme Ulpiano: “Viver honestamente, a ninguém lesar, dar a cada um o que é seu.” Se se der a cada um o que é seu far-se-á justiça no plano individual, apenas. Essa não é a tarefa do sistema jurídico.



A justiça que serve de fundamento ao Direito é a justiça social, ou seja, esta mesma sob a qual já se debruçara Aristóteles há milênios, quando atribuiu à polis a função de atenuar a desigualdade natural entre os seres humanos. Hoje é o Estado que, através de políticas públicas de educação, saúde, habitação, transporte, vestuário, previdência social, lazer, deve promover socialmente os mais carentes em direção a uma sociedade mais equânime.



A justiça social deve ser tarefa do profissional do direito, ainda que juspositivista, posto que se encontra inspirando toda a ordem jurídica constitucional brasileira, e deve servir de parâmetro para todos os que lidam com o fenômeno jurídico no Brasil. Os dispositivos abaixo ilustram tal assertiva:



“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:



I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;



II - garantir o desenvolvimento nacional;



III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;



IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”



Já a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, outrora Lei de Introdução ao Direito Civil, Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, ainda em vigor, alterada pela Lei 12.376, de 30 de dezembro de 2010, enuncia a necessidade de o aplicador do Direito observar a justiça social:



Art. 5.º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” (Grifo nosso)





1.4 – Da legitimidade como requisito para a democracia





Infelizmente, os representantes do povo, legisladores, aqueles que produzem as normas que vão compelir a todos não têm conseguido traduzir os anseios, as aspirações populares. Não têm conseguido transpor para o ordenamento jurídico os valores, os princípios que norteiam a sociedade administrada.



A teoria da democracia representativa, importantíssima para a gênese do constitucionalismo moderno, fruto da revolução liberal burguesa, mostrou-se insuficiente para concretizar o valor igualdade. Muito ao contrário, os parlamentos têm atendido ao longo da história aos inconfessáveis objetivos de uma elite interessada em manter os seus privilégios previstos legislativamente. Têm sido os legisladores representantes não do povo que os elege, mas sim de uma classe dominante que possui condições, inclusive econômicas, de pressionar os elaboradores das normas jurídicas.



A conseqüência desse desequilíbrio é que o ordenamento tende a resultar não de um consenso popular, mas de imposição de vontade da classe dominante. E tal situação, mais uma vez, não pode ser resolvida apenas do ponto de vista do Direito, apesar de suas nefastas conseqüências para o sistema jurídico.



Consoante Jürgen Habermas e sua teoria da razão comunicativa, apenas será legítima uma norma jurídica quando todos os que serão afetados pelas decisões do processo de elaboração das mesmas tiverem o direito de buscar, democraticamente, o melhor argumento discutido racionalmente por entre os futuros compelidos à sua observância.



Obviamente, para que haja tal assembléia entre populares, não basta apenas que o povo possua nível cultural não só para valorizar o processo, mas tenha consciência de sua importância enquanto cidadão ativo, participante e capaz de influenciar o processo legislativo.



Muitos dirão que tal aspiração é utopia, que tal teoria não pode ser aplicada na prática. Todavia, uma teoria não existe para ser aplicada na prática. A prática é que deve ser criticada, com base no esquema teórico a fim de que a humanidade avance. Quando Montesquieu elaborou a teoria da separação dos poderes estatais a imensa maioria também pensou tratar-se de utopia, já que o poder do rei era absoluto, e segundo o governante, fundamentado no divino.



Já existem tentativas claras de aproximar a população da administração, como o orçamento participativo, por exemplo. Também já há na Câmara dos Deputados, a Comissão Permanente de Assuntos Participativos, por meio da qual entidades da sociedade civil podem propor projetos de lei, que ao final podem ir a plenário, transformando-se em norma vigente.



O profissional jurídico não pode ficar alheio a essa mudança de paradigma na elaboração do Direito. Deve, ao contrário, esforçar-se pela defesa de uma ordem jurídica cada vez mais justa e legítima.














[1] MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. p. 23.





[2] MORAES, Alexandre de. Constituição da República Federativa do Brasil. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 20-21.





[3] SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 111.





[4] DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 5. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979. p. 363.





[5] MENEZES, Tobias Barreto de. A idéia do Direito em Obras CompletasEstudos de Direito I. Rio de Janeiro: Record, 1991. p. 48.





[6] CASTRO, Celso Antonio Pinheiro de. Sociologia do Direito. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 16.





[7] VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 25.

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