I - Síntese do Direito no Brasil colonial
Pero Vaz de Caminha.
Destinado a facilitar o acesso ao material de apoio debatido presencialmente em sala de aula nos cursos ministrados pelo Mestre em Direito Constitucional Marcos Roberto Gentil Monteiro
I - Síntese do Direito no Brasil colonial
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.” (Súmula Vinculante 14)
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.” (Súmula Vinculante 11)
"Art. 2o A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
§ 1o A adoção dessas políticas e ações deverá levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais.
§ 2o É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade."
Portanto, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípo fundamental do sistema jurídico nacional obriga à reapreciação dos institutos de Direito Civil tais como a personalidade jurídica, a autonomia da vontade, o patrimônio, o contrato, a propriedade e a família, tornando-os vinculados à observância do fundamento supramencionado, de modo a garantir a utilidade social do Direito, bem como o compromisso do profissional jurídico com a valorização da pessoa humana, e, em consequência, com a construção de uma sociedade mais solidária e justa, nos termos do art. 3º da Constituição Federal:
"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."
II - Conceito de personalidade jurídica
Segundo a teoria do Direito Civil, a personalidade jurídica consiste na aptidão genérica para contrair direitos e obrigações, ou, de uma forma mais clara, a qualidade necessária para ser sujeito de direito.
III - Aquisição da personalidade jurídica pela pessoa física ou natural
Ocorre com o nascimento com vida, conforme prescreve a primeira parte do art. 2º do Código Civil:
"Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; (...)"
O nascimento com vida resta comprovado através da utilização do exame da docimasia hidrostática de Galeno, que diagnostica o início da atividade da função cárdio-respiratória.
Diferentemente do art. 30 do Código Civil espanhol, e em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da CF/88, o tempo de sobrevida e a forma humana são fatos desimportantes para a caracterização do início da personalidade jurídica da pessoa física ou natural.
Por conseguinte, ainda que faleça no menor espaço de tempo posterior, o recém-nascido cujo pai já tenha falecido terá adquirido, ainda que por breve instante, todos os direitos sucessórios de seu genitor, e transferido à sua mãe, em decorrência de haver se tornado sujeito de direitos, nos termos do art. 1º, c/c o art. 2º, primeira parte, dantes transcrito, do Código Civil:
"Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil."
IV - Natureza Jurídica do Nascituro
Trata-se do ente concebido, embora ainda não nascido, dotado de vida intra-uterina, motivo pelo qual a doutrina distingue-o do embrião mantido em laboratório, que a doutrina denomina de concepturo, ainda não concebido. Cuida-se nessa última hipótese da prole eventual, a quem se permite deixar benefício em testamento, desde que concebido nos dois anos subsequentes ao falecimento do testador, nos termos do art. 1.799, I, c/c o art. 1.800, § 4º do Código Civil:
"Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:
I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;
Art. 1.800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz.
§ 4o Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos."
Por conseguinte, em distinção clara, realizada por CHAVES DE FARIAS, Cristiano e ROSENVALD, Nelson, em sua obra Direito Civil - Teoria Geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 239: "Enquanto o nascituro é o filho que alguém já concebeu, mas ainda não nasceu, o concepturo é o filho que alguém ainda vai conceber."
O Código Civil, apesar de não reconhecê-lo como ente dotado de personalidade jurídica, outorga-lhe direitos, desde a sua concepção, nos termos da parte final de seu art. 2º:
"Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro."
Ao se adotar a concepção natalista, segundo a qual a aquisição da personalidade jurídica ocorre, apenas, com o nascimento com vida, o nascituro contará, tão somente, com expectativa de direitos, conforme entendem Vicente Ráo, Sílvio Rodrigues, Sílvio Venoza e Eduardo Espínola.
Entretanto, a questão não se encontra pacificada na doutrina, de forma que os adeptos da teoria condicional, Arnoldo Wald, Maria Helena Diniz e Serpa Lopes, defendem titularizar o nascituro direitos extrapatrimoniais, como o direito à vida, mas sob condição suspensiva, quando então adquiriria completa personalidade jurídica.
Para a teoria concepcionista, por fim, influenciada pelo Direito Francês, o nascituro adquire personalidade jurídica com a concepção, segundo Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua e Silmara Chinelato.
Nos termos da legislação em vigor, malgrado a controvérsia doutrinária, o nascituro titulariza direitos desde a concepção como:
a) o direito à vida, à proteção pré-natal, direitos personalíssimos previstos no art. 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente:
"Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência."
b) pode receber doação, sem sujeitar-se ao recolhimento do imposto sobre transmissão inter vivos;
c) pode ser beneficiado por legado ou herança;
d) pode valer-se da defesa de seus interesses por curador, nomeado, se os seus interesses colidirem com os de sua mãe, ou de seu representante legal, nos termos do art. 9º, I, c/c os arts. 877 e 878 do CPC:
"Art. 9o O juiz dará curador especial:
I - ao incapaz, se não tiver representante legal, ou se os interesses deste colidirem com os daquele;
Art. 877. A mulher que, para garantia dos direitos do filho nascituro, quiser provar seu estado de gravidez, requererá ao juiz que, ouvido o órgão do Ministério Público, mande examiná-la por um médico de sua nomeação.
§ 1o O requerimento será instruído com a certidão de óbito da pessoa, de quem o nascituro é sucessor.
§ 2o Será dispensado o exame se os herdeiros do falecido aceitarem a declaração da requerente.
§ 3o Em caso algum a falta do exame prejudicará os direitos do nascituro.
Art. 878. Apresentado o laudo que reconheça a gravidez, o juiz, por sentença, declarará a requerente investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro.
Parágrafo único. Se à requerente não couber o exercício do pátrio poder, o juiz nomeará curador ao nascituro."
e) beneficia-se da tipificação legal do crime de aborto;
f) apresenta direito à realização do exame de DNA, com o escopo de aferir a paternidade, consoante precedente do Supremo Tribunal Federal:
"(...) Coleta de material biológico da placenta, com propósito de se fazer exame de DNA, para averigüação de paternidade do nascituro, embora a oposição da extraditanda. (...)" (Rcl 2040 QUESTÃO DE ORDEM NA RECLAMAÇÃO, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Julgamento: 21/02/2002, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação: DJ DATA-27-06-2003 PP-00031 EMENT VOL-02116-01 PP-00129);
g) possui direito à satisfação de sua obrigação alimentar, nos termos dos arts. 1º, 2º, 6º e 7º da Lei 11.804/2008, segundo o precedente abaixo transcrito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
"Art. 1o Esta Lei disciplina o direito de alimentos da mulher gestante e a forma como será exercido.
Art. 2o Os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes.
Art. 6o Convencido da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré.
Parágrafo único. Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão.
Art. 7o O réu será citado para apresentar resposta em 5 (cinco) dias."
"INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. ALIMENTOS PROVISÓRIOS EM FAVOR DO NASCITURO. POSSIBILIDADE. ADEQUAÇÃO DO QUANTUM. 1. Não pairando dúvida acerca do envolvimento sexual entretido pela gestante com o investigado, nem sobre exclusividade desse relacionamento, e havendo necessidade da gestante, justifica-se a concessão de alimentos em favor do nascituro. 2. Sendo o investigado casado e estando também sua esposa grávida, a pensão alimentícia deve ser fixada tendo em vista as necessidades do alimentando, mas dentro da capacidade econômica do alimentante, isto é, focalizando tanto os seus ganhos como também os encargos que possui. Recurso provido em parte." (Agravo de Instrumento Nº 70006429096, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 13/08/2003);
h) titulariza direito à reparação pelo dano moral decorrente de falecimento de seu genitor, conforme orienta o precedente abaixo, do Superior Tribunal de Justiça, cujo trecho elucidativo segue abaixo transcrito:
"RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. MORTE. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. FILHO NASCITURO. FIXAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. DIES A QUO. CORREÇÃO MONETÁRIA. DATA DA FIXAÇÃO PELO JUIZ. JUROS DE MORA. DATA DO EVENTO DANOSO. PROCESSO CIVIL. JUNTADA DE DOCUMENTO NA FASE RECURSAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE NÃO CONFIGURDA A MÁ-FÉ DA PARTE E OPORTUNIZADO O CONTRADITÓRIO. ANULAÇÃO DO PROCESSO. INEXISTÊNCIA DE DANO. DESNECESSIDADE.
- Impossível admitir-se a redução do valor fixado a título de compensação por danos morais em relação ao nascituro, em comparação com outros filhos do de cujus, já nascidos na ocasião do evento morte, porquanto o fundamento da compensação é a existência de um sofrimento impossível de ser quantificado com precisão." (REsp 931556/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/06/2008, DJe 05/08/2008)
Ressalte-se que se estende ao natimorto a proteção jurídica conferida ao nascituro, no tocante aos seus direitos à imagem, nome e sepultura, em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, segundo o Enunciado 01 da I Jornada de Direito Civil, realizada de 11 a 13 de setembro de 2002, importante postulado doutrinário elaborado por juristas reunidos em Brasília, promovida pelo Conselho da Justiça Federal e Superior Tribunal de Justiça, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado de Aguiar:
"1 – Art. 2º: a proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura."
V - Capacidade civil
Capacidade de direito é uma capacidade genérica, adquirida no momento do nascimento com vida. A capacidade de fato ou de exercício é adquirida aos poucos, segundo o desenvolvimento bio-psicológico do indivíduo.
No momento em que nasce com vida, o recém-nascido adquire personalidade jurídica, embora ainda não possua capacidade de fato.
A capacidade plena traduz a soma da capacidade de direito e a capacidade de fato, sendo atingida em geral aos 18 anos.
CAPACIDADE DE DIREITO + CAPACIDADE DE FATO = CAPACIDADE PLENA
A incapacidade civil é a falta de capacidade de fato.
Incapacidade Absoluta ( art. 3°/CC)
"Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I - os menores de dezesseis anos;
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade."
Incapacidade Relativa (art. 4°/CC)
"Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;
III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial."
Menores impúberes – menores de 16 anos – representação;
Menores púberes – maiores de 16 anos e menores de 18 anos – assistência.
No que tange ao artigo 3°, que cuida dos absolutamente incapazes, aonde se enquadram os ausentes e os surdos-mudos?
A ausência foi tratada como hipótese de morte presumida (art. 6° CC).
"Art. 6o A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva."
O surdo-mudo pode enquadrar-se em qualquer das três situações a depender do caso concreto. Se o surdo-mudo tiver menos de 16 anos enquadra-se no inciso I; quando a surdo-mudez for de nascença, indicando uma demência mental enquadra-se no inciso II; também pode-se enquadrar no inciso III.
Havendo sentença de interdição, o que ocorre se o incapaz realizar um ato em estado de lucidez? Uma vez decretada a interdição, todos os atos são inválidos. A doutrina italiana, acolhida no Brasil, sustenta a possibilidade de invalidar atos praticados por incapaz ainda não interditado, desde que comprovada a má-fé do contratante e o prejuízo ao incapaz.
ATENÇÃO!!! A expressão “loucos de todo gênero” não é mais utilizada.
Ébrios habituais, viciados em tóxicos e os deficientes mentais que tenham o discernimento reduzido – são relativamente incapazes.
Pródigo – é a pessoa que gasta imoderadamente seu patrimônio, podendo reduzir-lhe à miséria – relativamente incapaz.
Índio – Lei 5371/67 e Lei 6001/73 (Estatuto do Índio) – são tratados como absolutamente incapazes nessas leis.
O novo CC não tratou da matéria da capacidade em relação aos índios.
A maioridade civil é atingida aos 18 anos – art. 5° CC.
"Art. 5o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:
I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;
II - pelo casamento;
III - pelo exercício de emprego público efetivo;
IV - pela colação de grau em curso de ensino superior;
V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria."
ATENÇÃO!!! A redução da maioridade civil não interferiu na capacidade para perceber benefícios previdenciários.
Emancipação – traduz a antecipação da capacidade plena e poderá ser:
Voluntária – é a concedida pelos pais (pai + mãe) Art. 5°, parágrafo único, I, CC, por escritura pública ou privada.
Judicial – é a concedida pelo juiz a menores de 16 anos completos – art. 5°, parágrafo único, I, CC.
Legal – é taxativamente prevista na lei (art. 5°, parágrafo único, II a V) – inciso V – a demissão não retira a emancipação.
ATENÇÃO !!! A separação e o divórcio não retiram a emancipação, pois esta não é ato transitório, mas permanente. Caso o casamento seja anulado ou nulo, a emancipação pode ser prejudicada, dependendo da hipótese. Não há previsão legal de que a união estável emancipe.
A emancipação é um ato irrevogável e que torna o menor pessoa plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil.
BIBLIOGRAFIA
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSELVALD, Nelson. Direito Civil - teoria geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. v.1.
I - Sociologia e Direito
1.1 – Introdução
Investigar o conjunto de expectativas que possui a sociedade brasileira diante do desempenho dos profissionais jurídicos é tarefa necessária a qualquer desses profissionais, posto que são remunerados pelo corpo social para defender seus mais elevados interesses em juízo.
Não se trata de tolher a liberdade de exercício profissional, direito humano e fundamental, mas sim de examinar, cientificamente, as causas que têm levado a população a descrer no sistema jurídico, a partir da conduta de seus profissionais, bem como apontar fundamentos teóricos que devem ser levados em conta por todos aqueles que labutam no foro, cotidianamente.
1.2 – Do Direito enquanto subsistema social
Em primeiro lugar, é preciso perceber as insuficiências do Direito no tocante à condução do povo brasileiro à fruição dos direitos previstos na legislação. É imperioso não esperar do sistema jurídico, enquanto controle social formal, mais do que aquilo que representa, diante de uma realidade social mais ampla.
Um tecnicismo supervalorizado pelos cursos jurídicos, em direção à realização financeira dos postulantes a cargos bem remunerados, em cotejo com a condição social da imensa maioria, tem provocado uma desvalorização do real conhecimento jurídico, em suas relações com os demais sistemas sociais, de acordo com a visão interdisciplinar exigida pelo atual estágio da ciência.
Não se pode realmente conhecer qualquer instituto jurídico senão a partir de sua origem e evolução histórica. Qual outra razão explica que a legislação civil pátria seja fortemente influenciada pela codificação romana? “O mundo jurídico não pode, então, ser verdadeiramente conhecido, isto é, compreendido, senão em relação a tudo o que permitiu a sua existência e no seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do direito de seu isolamento, projecta-o no mundo real onde ele encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social”[1].
A população brasileira, fruto de grupos étnicos historicamente compelidos a viver sob o padrão europeu de existência, em sua generalidade órfã de uma educação de qualidade, aviltantemente remunerada, responsabiliza o jurídico pela ineficácia de normas constitucionais como a que abaixo se segue:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;”[2]
Ocorre que é na Constituição que os sistemas jurídico e político se acoplam. Em conseqüência disso, de nada adianta um direito constitucional encontrar-se previsto, destinado à cidadania, se não houver vontade política capaz de torná-lo eficaz. “Nas contínuas discussões sobre a necessidade e a porcentagem de um possível aumento, os políticos e a mídia discutem sobre a viabilidade econômica de uma tal medida. Geralmente, recusa-se um aumento drástico com o argumento de que isto levaria ao endividamento do Estado, à recessão econômica, à inflação etc. Nessas discussões todos parecem ter esquecido a prescrição que a Constituição de 1988 impõe ao legislador: a obrigação jurídica de instituir um salário mínimo capaz de atender as necessidades de moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (art. 7.º, inciso IV). Tal obrigação não está sujeita a considerações de possibilidade econômica ou política”[3].
1.3 - Da justiça social enquanto paradigma de conduta
Urge diagnosticar a realidade jurídica integrante de uma realidade social bem mais ampla. Portanto, é necessário superar o mito da neutralidade científica, cânone do positivismo. Como é possível ao cientista social, ao profissional jurídico, que receberam os primeiros valores morais em família, educaram-se de acordo com a opção pedagógica da escola que freqüentaram, viveram e convivem em sociedade, que sejam neutros?
Do advogado se espera que defenda os interesses de seus constituintes, é parcial por natureza; do promotor de justiça, fiscal da lei e do interesse público, a opção pelo social é patente; e não há como negar, o juiz deve ser imparcial, todavia, não consegue completamente, posto que é humano, sujeito à influência do mundo que o cerca.
Desde meados do século passado, a dimensão valorativa tem ganho força progressiva no mundo jurídico, a partir da adoção universal da Teoria da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale. De fato: todo acontecimento que gera efeito jurídico (fato jurídico), é regulado por regra de conduta coercível (norma jurídica), fundamentada em princípio aceito por uma dada sociedade, num determinado momento histórico (valor).
Pode-se perceber ainda que a dimensão axiológica é a que vai fundamentar a norma jurídica a ser editada, para regular a conduta humana
É simples compreender quando se analisa uma norma jurídica em sua particularidade. Assim, quando o artigo 121 do Código Penal brasileiro prescreve a sanção privativa de liberdade para a conduta de “matar alguém”, é porque o Direito, ciência deôntica, que estuda como deve ser a conduta do homem em sociedade, pretende concretizar o princípio, valor do respeito a vida, enquanto bem jurídico mais caro à coletividade. Aliás, não é outro o motivo pelo qual há sanções gradativamente previstas no ordenamento, a depender dos bens jurídicos, princípios, valores que a sociedade quer ver concretizados para tornar possível a convivência social.
O hodierno estágio da ciência do Direito não mais se compraz com reducionismos, necessita de uma visão interdisciplinar, fulcrada em princípios que a fundamentem. Tal a importância da dimensão axiológica que o jusfilósofo italiano Giorgio Del Vecchio, conceitua Direito como sendo “a coordenação objectiva das acções possíveis entre vários sujeitos, segundo um princípio ético que as determina, excluindo qualquer impedimento”[4].
Mas a opaca contraposição positivista de que o Direito é ciência, e, enquanto tal, não se influencia por valores subjetivos seria acertada se os valores que fundamentam o sistema jurídico fossem dotados dessa alegada subjetividade. Mas não, não são os valores de cada um, em sua singularidade, que servem de fundamento ao Direito, todavia, os valores compartilhados por todo um corpo social, num determinado momento histórico. É por essa razão que cada sociedade possui sua cultura, seus valores, e, em conseqüência, seu correspondente ordenamento jurídico.
Em contraposição, há valores aceitos numa dimensão supranacional, e, hoje, após a consolidação da Organização das Nações Unidas como instituição destinada à proteção da paz universal, global, que fundamentam os direitos humanos historicamente construídos de liberdade, igualdade, fraternidade e democracia. E o pensamento genial do sergipano Tobias Barreto já sabia disso, quando por expressão lapidar proferida no final do século XIX precisou o objeto da ciência jurídica enquanto histórico-cultural: “O Direito não é filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, produto cultural da humanidade”[5].
É que Direito, ciência deôntica, investiga os fenômenos sob a categoria de pensamento do dever-ser. O fenômeno jurídico já nasce valorado, portanto, pretende realizar por meio do ordenamento, os princípios aceitos por uma determinada sociedade. “A Filosofia sistematiza conceitos em nível de abstração, enquanto a ciência é positiva, isto é, junge-se ao experimental – observável, empírico -, relegando a valoração a priori, aceitando o axiológico apenas como expressão fenomênica configurada”[6].
A desvalorização da dimensão axiológica do sistema jurídico não conduz, apesar do propalado pelo positivismo, à neutralidade científica, mas sim à omissão diante das influências danosas advindas da classe dominante política e economicamente, capazes de tornar o sistema jurídico como um todo ineficaz.
Sob o mito da neutralidade científica o direito alemão já foi nazista. E é precisamente essa falsa neutralidade a principal responsável pelo descrédito da população brasileira em seus profissionais jurídicos.
Não há como o sistema jurídico desprezar os valores aceitos pela sociedade. Aliás, não há um só pensamento que não seja produzido de acordo com a ideologia do sujeito pensante. Logo, urge perceber fundamentos lógicos e axiológicos do sistema jurídico. Necessário é diagnosticar que Direito é fato, valor e norma. Todavia, devido o fato de ser ciência deôntica, o Direito deve ser justo e legítimo. “O ponto de partida há de ser sempre a afirmação, de cunho universal, de que o Direito é fato, valor e norma. Não existe senão com essas três dimensões. Contudo, o enunciado da teoria é meramente descritivo, situando-se na ordem sociológica da pura constatação. Direito não deve ser fato, valor e norma; é, e não pode deixar de ser. Na margem oposta, a nova teoria afirma que, além da primeira qualificação da juridicidade, o Direito deve ser justo e legítimo. Pode não ser, sem deixar de ser Direito. Precisamente nessa diferença, matriz de férteis resultados no domínio da produção filosófica e científica, parece residir a superioridade do tridimensionalismo axiológico, aqui proposto em suas linhas gerais”[7].
Mas não se diga com o positivismo que “o que é justo para alguém, pode não ser justo para outrem”. A justiça, enquanto valor que fundamenta o Direito não é a justiça em sua dimensão individual, conforme Ulpiano: “Viver honestamente, a ninguém lesar, dar a cada um o que é seu.” Se se der a cada um o que é seu far-se-á justiça no plano individual, apenas. Essa não é a tarefa do sistema jurídico.
A justiça que serve de fundamento ao Direito é a justiça social, ou seja, esta mesma sob a qual já se debruçara Aristóteles há milênios, quando atribuiu à polis a função de atenuar a desigualdade natural entre os seres humanos. Hoje é o Estado que, através de políticas públicas de educação, saúde, habitação, transporte, vestuário, previdência social, lazer, deve promover socialmente os mais carentes em direção a uma sociedade mais equânime.
A justiça social deve ser tarefa do profissional do direito, ainda que juspositivista, posto que se encontra inspirando toda a ordem jurídica constitucional brasileira, e deve servir de parâmetro para todos os que lidam com o fenômeno jurídico no Brasil. Os dispositivos abaixo ilustram tal assertiva:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Já a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, outrora Lei de Introdução ao Direito Civil, Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, ainda em vigor, alterada pela Lei 12.376, de 30 de dezembro de 2010, enuncia a necessidade de o aplicador do Direito observar a justiça social:
“Art. 5.º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” (Grifo nosso)
1.4 – Da legitimidade como requisito para a democracia
Infelizmente, os representantes do povo, legisladores, aqueles que produzem as normas que vão compelir a todos não têm conseguido traduzir os anseios, as aspirações populares. Não têm conseguido transpor para o ordenamento jurídico os valores, os princípios que norteiam a sociedade administrada.
A teoria da democracia representativa, importantíssima para a gênese do constitucionalismo moderno, fruto da revolução liberal burguesa, mostrou-se insuficiente para concretizar o valor igualdade. Muito ao contrário, os parlamentos têm atendido ao longo da história aos inconfessáveis objetivos de uma elite interessada em manter os seus privilégios previstos legislativamente. Têm sido os legisladores representantes não do povo que os elege, mas sim de uma classe dominante que possui condições, inclusive econômicas, de pressionar os elaboradores das normas jurídicas.
A conseqüência desse desequilíbrio é que o ordenamento tende a resultar não de um consenso popular, mas de imposição de vontade da classe dominante. E tal situação, mais uma vez, não pode ser resolvida apenas do ponto de vista do Direito, apesar de suas nefastas conseqüências para o sistema jurídico.
Consoante Jürgen Habermas e sua teoria da razão comunicativa, apenas será legítima uma norma jurídica quando todos os que serão afetados pelas decisões do processo de elaboração das mesmas tiverem o direito de buscar, democraticamente, o melhor argumento discutido racionalmente por entre os futuros compelidos à sua observância.
Obviamente, para que haja tal assembléia entre populares, não basta apenas que o povo possua nível cultural não só para valorizar o processo, mas tenha consciência de sua importância enquanto cidadão ativo, participante e capaz de influenciar o processo legislativo.
Muitos dirão que tal aspiração é utopia, que tal teoria não pode ser aplicada na prática. Todavia, uma teoria não existe para ser aplicada na prática. A prática é que deve ser criticada, com base no esquema teórico a fim de que a humanidade avance. Quando Montesquieu elaborou a teoria da separação dos poderes estatais a imensa maioria também pensou tratar-se de utopia, já que o poder do rei era absoluto, e segundo o governante, fundamentado no divino.
Já existem tentativas claras de aproximar a população da administração, como o orçamento participativo, por exemplo. Também já há na Câmara dos Deputados, a Comissão Permanente de Assuntos Participativos, por meio da qual entidades da sociedade civil podem propor projetos de lei, que ao final podem ir a plenário, transformando-se em norma vigente.
O profissional jurídico não pode ficar alheio a essa mudança de paradigma na elaboração do Direito. Deve, ao contrário, esforçar-se pela defesa de uma ordem jurídica cada vez mais justa e legítima.
[2] MORAES, Alexandre de. Constituição da República Federativa do Brasil. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 20-21.
[3] SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 111.
[4] DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 5. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979. p. 363.
[5] MENEZES, Tobias Barreto de. A idéia do Direito