domingo, 3 de outubro de 2010

Constitucionalidade do sistema de cotas nas universidades públicas

RESUMO


Análise do sistema de cotas das universidades públicas, previsto na Lei nº 10.558/2002, que “Cria o programa Diversidade na Universidade”, e na Lei nº 10.678/2003, que “Cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República”, e no art. 53, IV, da Lei nº 9.394/96, que “Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional”, e seu cotejo com a Constituição da República Federativa do Brasil.



INTRODUÇÃO


Na Antiguidade, por intermédio dos filósofos gregos PLATÃO e ARISTÓTELES, justificou-se a escravidão, completamente contrária à idéia de igualdade. Deve-se reconhecer, todavia, que tais pensadores viveram séculos antes da revolução industrial, quando não havia máquinas para auxiliar o homem no trabalho pesado.

Com efeito, formulou ARISTÓTELES a primeira classificação da justiça, dividindo-a em distributiva e corretiva: “Da justiça particular e do que é justo no sentido correspondente, (A) uma espécie é a que se manifesta nas distribuições de honras, de dinheiro ou das outras coisas que são divididas entre aqueles que têm parte na constituição (pois aí é possível receber um quinhão igual ou desigual ao de outro); e (B) outra espécie é aquela que desempenha um papel corretivo nas transações entre indivíduos. Desta última há duas divisões: dentre as transações, (1) algumas são voluntárias, e (2) outras são involuntárias – voluntárias, por exemplo, as compras e vendas, os empréstimos para consumo, as arras, o empréstimo para uso, os depósitos, as locações (todos estes são chamados voluntários porque a origem das transações é voluntária); ao passo que das involuntárias, (a) algumas são clandestinas, como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, o engodo a fim de escravizar, o falso testemunho, e (b) outras são violentas, como a agressão, o seqüestro, o homicídio, o roubo à mão armada, a mutilação, as invectivas e os insultos” .

E continua o estagirita, desenvolvendo a função da justiça e comentando o papel da polis: “Eis aí por que as pessoas em disputa recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz é recorrer à justiça, pois a natureza do juiz é ser uma espécie de justiça animada; e procuram o juiz como um intermediário, e em alguns estados os juízes são chamados mediadores, na condição de que, se os litigantes consiguirem o meio-termo, conseguirão o que é justo. O justo pois, é um meio-termo já que o juiz o é. Ora, o juiz reestabelece a igualdade. É como se houvesse uma linha divisória em partes desiguais e ele retirasse a diferença pela qual o segmento maior excede a metade para acrescenta-la ao menor. E quando o todo foi igualmente dividido, os litigantes dizem que receberam “o que lhes pertence” – isto é, receberam o que é igual” .

Dessa forma, apesar de partir da desigualdade entre os homens, posto haver legitimado a escravidão, ARISTÓTELES, milênios atrás, já previra a função igualadora do Estado: pela justiça distributiva cada um receberia seu quinhão conforme seus méritos, cabendo à polis, pelo juiz, corrigir ou reparar essa desigualdade originária entre os homens.

Dos excertos aristotélicos trazidos à baila, nota-se a formulação embrionária do princípio constitucional da igualdade, diretamente, e, indiretamente, de princípios constitucionais do processo, destinados a dotar o direito de igualdade de eficácia instrumental, tais como o do acesso à justiça (art. 5º, LXXIV, CF) e o da exclusividade do exercício da função jurisdicional pelo Estado, através do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF).

Contudo, antes mesmo de Sócrates e seus discípulos, os sofistas já haviam concebido a idéia de igualdade, enquanto liberdade positiva, consistente no direito à participação política, ou “igual liberdade de todos de participarem dos negócios públicos” . Dessa forma, “Eurípides, através de Teseu, define a liberdade pela isegoria, o igual direito de falar, por ele considerado “a mais bela igualdade” de que pode usufruir o cidadão” .

Deve-se, ainda, aos sofistas, as primeiras elucubrações a respeito da desigualdade, enquanto discriminação quanto à origem dos cidadãos, como critério para o provimento dos cargos públicos: “A igualdade pressupõe a fraternidade, aquela decorrente da igual liberdade de todos de participarem dos negócios públicos. Na renovação anual do poder, como assinala Eurípides, os pobres e os ricos têm igual oportunidade de participar. E mais: a pobreza – diz-se na oração fúnebre – não constitui impedimento para a concorrência aos cargos públicos, onde só o mérito conta” .

Todavia, as formulações da Antiguidade não foram suficientes para o reconhecimento da igualdade enquanto categoria jurídica, ou melhor, como bem jurídico a ser tutelado. Apenas com o Cristianismo, e seu legado de amor ao próximo como a ti mesmo, de tônica igualitária, o princípio da igualdade incorpora-se à cultura da humanidade ocidental, passando a ser tutelado pelo Direito. Como informa MORAES: “A forte concepção religiosa trazida pelo Cristianismo, com a mensagem de igualdade de todos os homens, independentemente de origem, raça, sexo ou credo, influenciou diretamente a consagração dos direitos fundamentais, enquanto necessários à dignidade da pessoa humana” .

Contudo, a positivação do princípio da igualdade na ordem jurídica apenas iniciou em 26.08.1789, logo após a Revolução Francesa, quando a Assembléia Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que também tutelava a generalidade dos direitos fundamentais, sintetizados pelo ideal de liberdade, igualdade e fraternidade.

Com o desenvolvimento da teoria marxista, tornou-se necessário estender os direitos de liberdade, igualmente, à universalidade dos cidadãos, provocando o surgimento de uma nova categoria de direitos fundamentais: os direitos econômicos e sociais. Com efeito, após a Revolução Industrial, os trabalhadores eram explorados, com jornada e condições de trabalho desumanas, quadro agravado pelo fato de o Estado não prever, na Constituição, os direitos da classe obreira, única ferramenta eficaz na tentativa de minorar as profundas desigualdades sociais até hoje existentes: “Faltava apenas uma coisa: uma instituição que não só assegurasse as novas riquezas individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica; que não só consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa consagração santificadora o objetivo mais elevado da comunidade humana, mas também imprimisse o solo geral do reconhecimento da sociedade às novas formas de aquisição da propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras – a acumulação, portanto, cada vez mais acelerada das riquezas: uma instituição que, em uma palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o direito de a classe possuidora explorar a não-possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda. E essa instituição nasceu. Inventou-se o Estado” .


Todavia, após as revoluções socialistas, os direitos sociais dos trabalhadores passaram a ser reconhecidos como humanos, tornando-se fundamentais, positivados nas Constituições posteriores, consoante contextualiza BONAVIDES: “Da mesma maneira que os da primeira geração, esses direitos foram inicialmente objeto de uma formulação especulativa em esferas filosóficas e políticas de acentuado cunho ideológico; uma vez proclamados nas Declarações solenes das Constituições marxistas e também de maneira clássica no constitucionalismo da social-democracia (a de Weimar, sobretudo), dominaram por inteiro as Constituições do segundo pós-guerra” .

O princípio da igualdade não é fruto do acaso. Reflete a histórica luta entre elites e massa, bem como a evolução histórica do Direito Constitucional enquanto ramo do conhecimento jurídico que, via Constituição, objetiva garantir, realizar e concretizar os direitos fundamentais, percebidos por GUERRA FILHO, “enquanto manifestações positivas do Direito, com aptidão para a produção de efeitos no plano jurídico” .

Com efeito, a Constituição pátria vigente dedica todo um título (o segundo), além de outras normas constantes de outros títulos de seu corpo, à previsão, disciplinamento e instrumentalização de tais direitos, que conforme ALEXANDRE DE MORAES: “caracterizam-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que configura um dos fundamentos de nosso Estado Democrático, conforme preleciona o art. 1º, IV” . De outra forma, escreve PAULO BONAVIDES a respeito dos direitos fundamentais de segunda dimensão: “São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal deste século, nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula” .



II – ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA


Enquanto política pública voltada à promoção social dos afrodescendentes, pode-se apontar a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos da América, capitaneada pelo líder MARTIN LUTHER KING, como origem do sistema de cotas nas universidades públicas.
A jurisprudência norte-americana registra o famoso caso “Grigs v. Duke Power Co., em que os autores, negros empregados da empresa ré, se queixavam do programa de ação afirmativa delineado pela empresa (que só o implementou após fortes pressões políticas e sociais do movimento em defesa dos direitos civis) como forma de permitir a contratação e a promoção de integrantes dessa etnia, por entenderem que os critérios elaborados tinham impactos raciais desproporcionais. O Judiciário Federal da Carolina do Norte, acolhendo a pretensão então manifestada, entendeu que o novo critério dos "testes de inteligência" exigidos para a promoção e admissão, ao invés do antigo critério da mera apresentação de diplomas escolares, favorecia a admissão de brancos, porque a maioria dos negros candidatos havia freqüentado escolas segregadas de pior qualidade. Lembre-se, por ser oportuno, que o caso, datado de 1970, ocorreu apenas 16 anos após o precedente da Suprema Corte – Brown v. Board of Education – que selou o destino da segregação das escolas e da teoria do equal but separate nos Estados Unidos.”



III – BASE LEGAL


O sistema de cotas nas universidades públicas resta positivado no art. 1º da Lei nº 10.558/2002:
“Art. 1o Fica criado o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.”

Para a sua execução, enquanto ação afirmativa expressa no Plano Nacional de Direitos Humanos e no Plano Nacional de Educação, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, através da Lei nº 10.678/2003.

No plano legislativo infraconstitucional, pode-se apontar, principalmente, o art. 53, IV, da Lei nº 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que com fundamento na autonomia universitária, prevista no art. 207, caput, e 208, V, da Constituição Federal, autoriza as universidades a fixar o número de vagas, a partir de sua capacidade institucional e das exigências da sociedade onde se encontra inserida:

“Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:
IV - fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio;”


A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, integrada ao ordenamento jurídico nacional pelo Decreto nº 65.810/69, também, por igual, fundamenta a política pública do sistema de cotas nas universidades públicas, desde que obedecidos os critérios da proporcionalidade e razoabilidade exigidos constitucionalmente, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em decisão prolatada no Recurso Especial nº 1132476, da Relatoria do Ministro Humberto Martins, cuja ementa merece ser transcrita:


“ADMINISTRATIVO – AÇÕES AFIRMATIVAS – POLÍTICA DE COTAS – AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA – ART. 53 DA LEI N. 9.394/96 – INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO INC. II DO ART. 535 DO CPC – PREQUESTIONAMENTO IMPLÍCITO – MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL EM FACE DE DESCRIÇÃO GENÉRICA DO ART. 207 DA CF/88 – DEFINIÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE REPARAÇÃO – CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL – DECRETO N. 65.810/69 – PROCESSO SELETIVO DE INGRESSO – FIXAÇÃO DE CRITÉRIOS OBJETIVOS LEGAIS, PROPORCIONAIS E RAZOÁVEIS PARA CONCORRER A VAGAS RESERVADAS – IMPOSSIBILIDADE DO PODER JUDICIÁRIO CRIAR EXCEÇÕES SUBJETIVAS – OBSERVÂNCIA COMPULSÓRIA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA.
1. A oposição de embargos declaratórios deve acolhida quando o pronunciamento judicial padecer de ambiguidade, de obscuridade, de contradição, de omissão ou de erro material, os quais inexistem neste caso. Não há, portanto, violação do art. 535 do CPC.
2. Admite-se o prequestionamento implícito, configurado quando a tese jurídica defendida pela parte é debatida no acórdão recorrido.
3. A Constituição Federal veicula genericamente os contornos jurídicos de diversos institutos e conceitos, deixando, na maioria das vezes, o seu trato específico para as normas infraconstitucionais. O assento constitucional de um instituto ou conceito, sem detalhamentos e desdobramentos, não afasta a competência desta Corte quando a Lei Federal disciplina imperativos específicos.
4. Ações afirmativas são medidas especiais tomadas com o objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais, sociais ou étnicos ou indivíduos que necessitem de proteção, e que possam ser necessárias e úteis para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais, e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.
5. A possibilidade de adoção de ações afirmativas tem amparo nos arts. 3º e 5º, ambos da Constituição Federal/88 e nas normas da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, integrada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n. 65.810/69.
6. A forma de implementação de ações afirmativas no seio de universidade e, no presente caso, as normas objetivas de acesso às vagas destinadas a tal política pública fazem parte da autonomia específica trazida pelo artigo 53 da Lei n. 9.394/96, desde que observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Portanto, somente em casos extremos a sua autonomia poderá ser mitigada pelo Poder Judiciário, o que não se verifica nos presentes autos.
7. O ingresso na instituição de ensino como discente é regulamentado basicamente pelas normas jurídicas internas das universidades, logo a fixação de cotas para indivíduos pertencentes a grupos étnicos, sociais e raciais afastados compulsoriamente do progresso e do desenvolvimento, na forma do artigo 3º da Constituição Federal/88 e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, faz parte, ao menos - considerando o nosso ordenamento jurídico atual - da autonomia universitária para dispor do processo seletivo vestibular.
8. A expressão "tenham realizado o ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública no Brasil", critério objetivo escolhido pela UFPR no seu edital de processo seletivo vestibular, não comporta exceção sob pena de inviabilização do sistema de cotas proposto.
Recurso especial provido em parte.” (Grifos nossos)

(REsp 1132476/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/2009, DJe 21/10/2009)




IV – NORMAS CONSTITUCIONAIS FUNDANTES E ESTRUTURANTES DO SISTEMA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS



Conferir igualdade nas esferas individual, social e regional constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, além de outros, conforme o art. 3°, III: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Numa sociedade - reunião de grupos de indivíduos ligados, ainda que inconscientemente, por características comuns, capitalista - uma vez que tem por principal objetivo a acumulação de capital, neoliberal - vítima da crescente redução do Estado na prestação dos serviços públicos e excludente – não proporciona aos miseráveis e pobres o acesso a seus direitos fundamentais, a ausência de políticas públicas que garantam aos excluídos a possibilidade de sua promoção social resultaria em omissão indesculpável, a reproduzir e fomentar a desigualdade natural entre os seres humanos, iniciada pela acumulação de capital no Neolítico, tal como demonstrado por ROUSSEAU, em sua obra já clássica, “Discurso sobre a desigualdade dos homens”.

A educação, “direito de todos e dever do Estado e da família”, consoante o artigo 205 da Constituição da República Federativa do Brasil vigente, ápice do ordenamento jurídico pátrio, que, segundo o mesmo dispositivo legal, possui por objetivos o pleno desenvolvimento da pessoa, a preparação para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, na realidade, tendo em vista o sucateamento de seu sistema público, e sua mercantilização no sistema privado, não tem proporcionado à cidadania brasileira o desenvolvimento de um espírito crítico capaz de filtrar as perniciosas influências propaladas em massa, principalmente pela mídia eletrônica, com a utilização do rádio e da televisão, principalmente.

A erotização subliminar promovida pelas apresentadoras de programas infantis, passando pela desenfreada violência, tônica dos desenhos animados, bem como das produções cinematográficas, principalmente norte-americanas, sem falar nas mini-séries nacionais tais quais, verbi gratia, “Presença de Anita”, afora a apologia do crime em programas tipo “Linha Direta”, onde o modus operandi de diversas infrações penais é semanalmente exibido, até chegar a entrevistas e programas que desconhecem a fronteira entre o público e o privado, desrespeitadores da intimidade, da vida privada e da honra, tais como “Casa dos Artistas” e “Big Brother”, a mídia eletrônica é um convite à criminalidade. Antes que se esqueça, há ainda os apelos publicitários ao consumo de drogas e álcool, recheados de gente jovem, saudável e esteticamente agradável.

Por conseguinte, a lógica neoliberal utiliza-se dos meios de comunicação de massa para reproduzir e incrementar, ainda mais, as desigualdades sociais existentes, na medida em que incentiva o apelo ao consumo, de forma a arregimentar almas inconscientes, ávidas pela satisfação de suas necessidades materiais impostas por um padrão estético que se pretende universal, e não resiste ao pensamento crítico libertador, produto de uma formação adequada, e comprometida com a real busca do conhecimento.

A função do sistema constitucional seria, justamente, reequilibrar esta equação perversa para os carentes, hipossuficientes da matéria e do espírito, no intuito de conferir eficácia às normas programáticas positivadas na Constituição, que proclamam o valor igualdade, como, por exemplo, a prevista no caput do art. 5º:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”


CONCLUSÃO

O sistema de cotas nas universidades públicas consiste em política destinada à realização, concretização da justiça no acesso aos objetivos tutelados constitucionalmente pela educação, posto que apenas a partir de uma formação acadêmica comprometida com a busca da realidade torna-se possível desenvolver no educando seu espírito crítico, e sua cidadania, objetivos da educação previstos no art. 205 da Constituição Federal, de forma a filtrar os objetivos inconfessáveis do modelo neoliberal, interessado na reprodução e incremento da desigualdade social:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

A reserva de vagas para os hipossuficientes encontra respaldo no princípio constitucional da “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, positivado no inciso I do art. 206 da Constituição Federal e na autonomia universitária para definir as formas de acesso a todos, beneficiários do direito subjetivo público do ensino gratuito, consoante previsto no caput do art. 207, c/c o art. 208, § 1º, da CF:
“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
(...)
§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.”

E não se venha contra-argumentar que constitui objetivo da República Federativa do Brasil a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, CF), porquanto o sistema visa, exatamente, a partir da identificação de grupos historicamente restringidos da igualdade de acesso à universidade, a estabelecer política compensatória que reequilibre o corpo social, de forma a oferecer igualdade de oportunidades aos destinatários das normas constitucionais supracitados.
A ideologia neoliberal, acostumada a hipervalorizar o individual, costuma alhear-se do corpo social onde se encontra inserida, ignorando o fato de que qualquer fenômeno humano, a partir do nascimento, ocorre, inexoravelmente, como produto de relações sociais, que deveriam ser éticas, segundo o imperativo categórico de KANT, mas são, infelizmente, relações de dominação e submissão, incumbindo ao sistema jurídico, enquanto forma de controle social, o seu rearranjo, de forma a realizar a paz e a justiça social.
Mas não se pense a política do sistema de cotas enquanto perene, eterna, posto que deve ser gradativamente suprimida, à medida que atenuadas as razões de sua aplicação. O objetivo do Estado, desde que se chamava polis, sempre foi reduzir as desigualdades sociais através das políticas públicas, sendo que a manutenção de políticas compensatórias de forma perene e imutável, compromete o objetivo fundamental da sociedade política, de mobilizar-se para exigir os seus direitos constitucionalmente tutelados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco em “Os Pensadores”. V. 4. 1. ed. São Paulo: Abril, 1973.

BARBOSA, Joaquim B. B.. Ação afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Vitória, 1960.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Celso Bastos, 1999.


MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 25.

SILVA, Alexandre. O desafio das ações afirmativas no direito brasileiro. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3479. Acesso em 03 de outubro de 2010.

VILA NOVA, Sebastião. Introdução à Sociologia. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2000.

VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, Humanismo e Democracia. São Paulo: Malheiros, 1998.

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